terça-feira, 30 de setembro de 2008

Der Prozess, by Franz Kafka

O Processo, de Franz Kafka é, indubitavelmente um dos maiores livros do século XX. Já li este livro há uns bons anos, mas sempre que leio algo que me desassossega lembro-me de K. e do "seu" Processo, daquela subtil e estranha cosmogonia, daquele engolir em seco, da Metamorfose, do Castelo, d' (...)


Ler Kafka é decifrar um código que, parecendo simplista e redundante, acaba por se mostrar extremamente complexo. O Processo é isso mesmo. É-nos apresentado Joseph K., um singular personagem, funcionário de uma instituição bancária sem nome, habitante de uma cidade da qual nada sabemos e cidadão de um país que desconhecemos totalmente.
Como o título indica, a trama gira em torno de um processo: o processo de K. E continuamos sem nada saber. Qual a acusação feita a K.? Qual o crime por si cometido? Que justiça é aquela, que o encarcera mantendo-o livre? Irrespondível! Nem ele mesmo sabe. Ou sabe e prefere não revelar.


Impregnada de uma profunda, mas subtil, apreciação social, esta obra é o espelho de uma mente crítica, em desconformidade com os ritos sociais vigentes, aos quais lança inúmeros ataques. Publicado postumamente, bem como a maioria dos restantes escritos de Kafka, este livro apenas nos é acessível porque Max Brod, amigo e confidente do autor, não lhe foi fiel (ou louco) ao ponto de satisfazer o seu último pedido: que queimasse todas (!) as páginas por si escritas. Haverá talvez quem considere que nada de importante se teria perdido. Respeito tal posição. Eu prefiro pensar que, se tais palavras tivessem sido queimadas, o fumo que delas teria emanado seria senhor de um dos mais belos, densos e desconcertantes odores alguma vez concebido.


retirado daqui.


Podem ler aqui no blog do Cupido.


segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Florbela Espanca

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens!
(...)
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
(...)

«A minha sede de infinito é maior do que eu, do que o mundo, do que tudo, e o meu espiritualismo ultrapassa o céu. Nada me chega, nada me convence, nada me enche. Sou uma pobre que nenhum tesouro acha digno das suas mãos vazias. A morte, talvez... esse infinito, esse total e profundo repouso.»




Alma perturbada. Amargura, mágoa, dor, desespero, pessimismo, saudade, tudo isto podemos relacionar com Florbela Espanca, a grande poetisa alentejana, natural de Vila Viçosa, onde nasceu em 1894. A sua vida conturbada, cheia de peripécias, as doenças que a afectaram, e sobretudo a neurose que a martirizava, acabaram por a levar ao suicídio, aos 36 anos.

"Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!"

(excerto do 1º soneto do Livro de Mágoas)


«Só hoje me levantei um pouco. Logo pela manhã muito vaidosamente pedi um espelho para me ver. Fiquei contente: muito pálida, com a boca muito pálida, com umas grandes olheiras roxas, a cabeça envolvida com ligaduras brancas, eu era mesmo... mesmo... adivinhe quem? Pois era mesmo... mesmo... Soror Saudade!
E, como a escandalosa trança preta aparecia a perturbar um pouco a grave religiosidade da minha presença, pedi que a escondessem bem. As monjas têm o cabelo cortado, pois não têm? Riram-se da minha infantilidade e talvez me chamassem doida, mas eu fiquei contente porque então é que eu era mesmo, mesmo igual a Soror Saudade.»

(Excerto de uma carta ao amigo Américo Durão, 1920)


Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,

Aquela que diz tudo e tudo sabe,

Que tem a inspiração pura e perfeita,

Que reúne num verso a imensidade!


Sonho que um verso meu tem claridade

Para encher todo o mundo! E que deleita

Mesmo aqueles que morrem de saudade!

Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!


Sonho que sou Alguém cá neste mundo...

Aquela de saber vasto e profundo,

Aos pés de quem a Terra anda curvada!


E quando mais no céu eu vou sonhando,

E quando mais no alto ando voando,

Acordo do meu sonho... E não sou nada!...

Livro de Mágoas


O meu mal

A meu Irmão

Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,

Eu sei o nome ao meu estranho mal:

Eu sei que fui renda dum vitral,

Que fui cipreste, e caravela, e dor!


Fui tudo que no mundo há de maior,

Fui cisne, e lírio, e águia, e catedral!

E fui, talvez, um verso de Nerval,

Ou um cínico riso de Chamfort...


Fui a heráldica flor de agrestes cardos,

Deram as minhas mãos aroma aos nardos...

Deu cor ao aloendro a minha boca...


Ah! De Boadbil fui lágrima na Espanha

E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha!

Mágoa não sei de quê! Saudade louca!

Livro de Sóror Saudade

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

E do disco se fez livro



Há livros, grandes livros e canções, grandes canções e músicos (não uso a palavra "artistas" porque infelizmente cada mais vem tendo sentido pejorativo...), grandes músicos.

E como admiro a tranversalidade na arte, e gosto de poesia e do Paco Ibañez e ouvi este disco no outro dia (Paco Ibañez, Por una Canción, de 1990) pensei: "se estou a ouvir este disco e a ler grandes poetas, não será de algum modo este disco um livro?" (e se alguém quiser dizer, olha este, armado em pseudo-intelectual, devo dizer que conheço o disco do Caetano que se chama "Livro"...).

Não quero dizer mais. Deixo este belo, embora deficientemente traduzido texto do grande José Agustín Goytisolo e os poemas que Paco interpreta no disco, bem como alguns videos. No fim, imagens retiradas do folheto de um Concerto que Paco deu em Coimbra em 2001 (aparecem em fundo umas "coisas" - pois, é o autógrafo que ele me deu, mas que se vê muito mal).

De Trovadores e Jograis

Quando as civilizações grega e romana foram derrubadas, na Europa começou um longo período de retrocesso cultural. Desapareceram os grandes poetas, desapareceram os grandes teatros, onde se encenava para um grande público. A cultura encerrou-se em alguns mosteiros e encontrava-se só ao alcance de uma minoria.
Foi na Provença, no século XII, que apareceram os primeiros trovadores (trovador ou faladores) de palavras felizes, que não escreviam em latim, mas na língua de OC.
Chamavam-se assim para se distinguirem dos intelectuais que falavam em latim. Os trovadores eram gente culta, alegre e satírica que se expressavam no idioma do cidadão comum. Compunham a letra e a música das suas canções, era o seu ofício. As suas obras eram interpretadas pelos jograis, origem dos cantautores actuais, e que para além de saber cantar, dominavam diversos instrumentos musicais. Em algumas situações os jograis compunham também a letra e a música das canções, como os cantautores actuais.
O êxito de trovadores e jograis, bem como a sua enorme influência junto das populações, muitas vezes assustou os detentores do poder: o IV concílio de Latrão proibiu a clérigos e monjas ter trato com trovadores e jograis, tendo-os definido como gente dissoluta e libertina. Mas também dentro do mesmo poder eclesiástico houve gente que não pensava da mesma forma: Francisco de Assis e seus discípulos romperam com esta proibição ao auto intitularem-se “Jograis do Senhor”.
Os trovadores, jograis e cantautores actuais mantiveram e enriqueceram este ofício, mas também, como outrora, foram mal vistos em muitos países, foram proibidos, marginalizados e até encarcerados.
Mas aí estão, trovadores e jograis de hoje, como antigos e gastos lutadores a favor da alegria e da liberdade.

José Agustín Goytisolo (traduzido do original em Castelhano)



No te pude ver
No te pude vercuando eras soltera
mas de casada te encontraré.

Te desnudaré

casada e romera
cuando en la noche las doce den.


Federico Garcia Lorca


Córdoba

Jaca negra, luna grande
y aceitunas en mi alforja.
Aunque sepa los caminos
yo nunca llegaré a Córdoba

Córdoba lejana y sola¡
Ay qué camino tan largo!

¡Ay mi jaca valerosa!
¡Ay que la muerte me espera!
Antes de llegar a Córdoba.

Córdoba

lejana y sola

Federico Garcia Lorca


Amada

Amada, en esta noche, tú te has crucificado
entre los dos maderos cruzados de mi beso.
Y tu pena me há dicho que Jesús ha llorado
y que hay un Viernes Santo mas dulce que esse beso.
Y tu pena me há dicho que Jesús ha llorado
y que hay un Viernes Santo mas dulce que esse beso.
Amada, en esta noche, tú te has crucificado.


Amada, moriremos los dos juntos, muy juntos
y ya no habrán reproches en tus ojos benditos
ni volveré a ofenderte. Y en uma sepultura
dormiremos los dos como dos hermanitos.

Cesar Vallejo








Juventud, divino tesoro

Juventud, divino tesoro.
¡Ya te vas para no volver!
Cuando quiero llorar no lloro
y as veces, lloro sin querer.

Juventud, divino tesoro.
¡Ya te vas para no volver!

En vano busqué a la princesa
que estaba triste de esperar.
La vida es dura, amarga, y pesa.
Ya no hay princesa que cantar.

Juventud, divino tesoro
¡Ya te vas para no volver!

A pesar del tiempo terco
mi sed de amor, no tiene fin.
Cabello gris, asi me acerco
a los rosales de jardin.

Juventud, divino tesoro
¡Ya te vas para no volver!

Ruben Dario


Ya no hay locos

Ya no hay locos, ya no hay locos
ya no hay locos, en España ya no hay locos.


Se murió aquel manchego,
Aquel esrajalário fantasma del desierto.


Ya no hay locos, ya no hay locos
ya no hay locos, amigos ya no hay locos.


Todo el mundo está cuerdo
terrible, horriblemente cuerdo.


Ya no hay locos, ya no hay locos
ya no hay locos, en España ya no hay locos.


¿Cuándo se pierde el juicio?
Yo pregunto: ¿Cuando se pierde, cuándo?
Si no es ahora, que la justicia
vale menos que el orín de los perros.


Ya no hay locos, ya no hay locos
ya no hay locos, amigos ya no hay locos.

Leon Felipe







Rosal

¿De qué sirve presumir,

rosal, de buen parecer
sí aún no acabas de nacer
quando empiezas a morir?
Hay que llorar e reir
vivo y muerto, tu arrebol.

Rosal, menos presunción
¿donde estan las clavellinas?
Pues serán mañana espinhas
las que ahora rosas son.

No es muy grande la ventaja
que tu calidad mejora,
si es tumantilla la aurora
es la noche su mortaja.
Se está riendo la malva
cabellera de un terrón.

Rosal, menos presunción
¿donde estan las clavellinas?
Pues serán mañana espinhas
las que ahora rosas son.

Francisco de Quevedo








Tus ojos me recuerdan

Tus ojos me recuerdan
las noches de verano.
Negra noche sin luna
orilla al mar salado.
Y un chispear de estrellas
de un cielo negro y bajo.
Tus ojos me recuerdan
las noches de verano.
Y tu morena cara
los trigos requemados
de un suspirar de fuego
de los maduros campos

Tus ojos me recuerdan
las noches de verano.

De tu morena cara
de tu soñar gitano
de tu mirar de sombras
quiero llenar mi vaso.
Me enbriagaré una noche
de un cielo negro y bajo
para cantar contigo
orilla al mar salado,
una cancion que deje
cenizas en los lábios
de tu mirar de sombra
quiero llenar mi vaso.

Tus ojos me recuerdan
las noches de verano.

Antonio Machado







Cancion de la muerte

Débil mortal, no te assuste
mi oscuridad ni mi nombre.
En mi seno encuentra el hombre
un término a su pesar.
Yo, compassiva, le ofrezco
lejos del mundo un asilo
donde en mi sombra, tranquilo
para siempre duerma en paz.

Soy la virgen misteriosa
de los últimos amores
y ofrezco un lecho de flores
sin espinhas ni dolor.
Y, amante, doy mi cariño
sin vanidad ni falsia.
No doy placer, ni alegria,
mas es eterno mi amor.

Deja que inquieten al hombre
que, loco, al mundo se lanza
mentiras de la esperanza,
recuerdos del bien que huió.
Mentiras son sus amores,
mentiras son sus victorias
y son mentiras sus glorias
i mentira su ilusion.

José de Espronceda


La Romeria

¡Ay qué blanca la triste casada!
¡Ay, como se queja entre las ramas!
Amapola y clavel será luego
cuando el macho despliegue su capa.

Si tú vienes a la Romería
a pedir que tu vientre se abra
no te pongas un velo de luto
sino dulce camisa de Holanda.

¡Ay, como relumbra!
¡Ay, como relumbraba!

Vete sola detrás de los muros
donde estan las higueras cerradas
Yy suporta mi cuerpo de tierra
hasta el blanco gemido del alba.

Federico Garcia Lorca







El Rey Almutamid

Soñaba en su lecho el rey
soñaba de madrugada
que entre las ondas del rio
buscaba manzanas blancas

Noche de medo en Sevilla
víspera de la batalha

Y el rey Almutamid
en el sueño contemplaba
la dulce fruta de nieve
que en los espejos temblaba

Noche de medo en Sevilla
víspera de la batalha

En Sevilla, Almutamid
abrió los ojos al alba
quando el sol enrogecia
en la ventana mas alta.
Y ni amanecer halló
ni arrayán bajo la almohada
ni del agua el dulce nido
donde vio manzanas brancas

Fanny Rubio








Volverán las oscuras golondrinas

Volverán las oscuras golondrinas
en tu balcon sus nidos a colgar
y otra vez con el alla a sus cristales
jugando llamarán.

Pero aquellas que el vuelo refrenaban
tu hermosura i mi dicha al contemplar,
aquellas que aprendieron nuestros nombres,
essas… ¡no volverán!


Volverán las tupidas madresselvas
de tu jardin las tapias a escalar,
y outra vez a la tarde, aún más hermosas,
sus flores se abrirán;

Pero aquellas cuajadas de rocio,
cuyas gotas mirábamos temblar
y caer, como lágrimas del dia…
essas… ¡no volverán!

G. A. Becquer

Podem ler aqui no blog do Cupido.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Ameixa Doce

Não, este não é o título de nenhum livro que eu tenha lido!

Vim aqui hoje "contar uma pequena história" e fazer um agradecimento público!

No dia 7 de Julho, após a formalização do convite a algumas amigas, com vista à criação desta Academia, ela começou a ganhar forma. De início, eu ia pondo no meu blog as participações e os links para os blogs respectivos. Entretanto, em conversa com a Ameixinha, surgiu a ideia da criação de um blog próprio para juntar todas as participações. Depois de consultar algumas "sócias", o resultado foi: é melhor, não é melhor, é preciso, não é preciso, as opiniões divergiam. Entretanto, e uma vez que, graças à divulgação feita pela Ameixa, a Academia cresceu bastante (felizmente!), resolvemos optar por essa solução.

Acontece que esta fase coincidiu com as minhas férias, pelo que pedi/propus à Ameixa que fosse ela a tratar da criação do novo blog, até porque ela tem muito jeito para estas coisas, como já puderam verificar...

E pronto, depois de uns diazinhos (e noites?!) de trabalho exaustivo e entusiasmado da nossa amiga, eis que surgiu este novo blog (ficou lindo, não ficou?). Parabéns, Ameixinha.

Entretanto, além desta "história" (verídica!) ter como principal objectivo agradecer à Ameixa o seu excelente trabalho, quero aproveitar tb para me desculpar pela minha ausência aqui do sítio mas, por motivos pessoais, estive sem possibilidade de me encarregar da tarefa de colocar as postagens, etc., enfim, tomar conta do blog, o que a nossa Ameixa Doce tem feito com todo o carinho, daí eu ter decidido "mudar-lhe" o nome. Mas ela é mesmo um doce! Mais uma vez, obrigada por tudo, e parabéns pelo teu empenho.

Cláudia Marques

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Ratos e Homens

Foi com boa disposição que descobri num hipermercado grandes clássicos de literatura a preços super convidativos.

Claro que não pensei duas vezes e trouxe para casa algumas obras que só conhecia de nome e à muito tencionava ler. Provavelmente não as comprei há mais tempo porque a oportunidade nunca se havia apresentado de forma tão acessível.


"Ratos e Homens" de John Steinbeck, é uma leitura que se faz rapidamente pois trata-se de uma história interessante contada em 114 páginas.

É uma narrativa de vidas solitárias povoadas por amizade e ambição.

George e Lennie percorrem o solo americano à procura de trabalho, mas em plena época de recessão americana (anos 30 do século XX) tudo o que conseguem encontrar é trabalho sazonal e mal pago. Vivem em condições de pobreza alimentando o sonho de comprar uma quinta onde possam viver os dois em paz, sem patrões e “criando coelhos de sobra para comer e vender”. É com esta ambição que trabalham e guardam o dinheiro.

George é um indivíduo magro, baixo, de cara morena, olhos vivos e bastante esperto, enquanto que Lennie é precisamente o oposto: tem a inteligência e a ingenuidade de uma criança e é tão corpulento que facilmente atrai atenções, além disso tem uma força superior à que seria de esperar num ser humano. Entre eles existe uma amizade de irmãos, George nutre um sentimento de protecção em relação a Lennie, pois comporta-se como o irmão mais velho que lidera e que toma as decisões mais importantes. Quando alguma situação exige força muscular, Lennie apresenta-se sempre orgulhosamente a seu lado. É uma relação equilibrada, pois a ignorância e a corpulência de um é compensada com a esperteza e a magreza do outro.

Ao longo da obra também vamos conhecendo outras personagens interessantes, cujos sonhos têm vindo a ser continuamente adiados por vicissitudes da vida, mas entre aventuras e desventuras o “sonho americano” vai persistindo. A realidade é que se mostra sempre inesperada e o relacionamento humano muito frágil.

Esta obra já foi adaptada ao teatro e ao cinema várias vezes, mas se calhar vale mais ler o livro! ;)

Podem ler aqui no blog da Moonlight.

sábado, 20 de setembro de 2008

Sucupira, ame-a ou deixe-a

Venturas e desventuras de Zeca Diabo e sua gente na terra de Odorico, o Bem-Amado

Já li este livro mais que uma vez e confesso que o acho fantástico.
A partir da peça “O Bem-Amado” de Dias Gomes, foi feita (para mim) uma das mais geniais e hilariantes telenovelas brasileiras. Na sequela dessa telenovela foi feita ainda uma série de televisão (com os actores da novela original). São desta série os sete contos que integram este livro ameno e alegre, zombeteiro e hilariante que, através da caricatura e da graça, critica a realidade político-social brasileira, dessacralizando mitos, comportamentos e costumes.

Seguem pequenos excertos…


“- Zeca Diabo… - Dirceu se encolhe no banco traseiro do carro que se distancia do Descampado, ainda não refeito do susto – com essa eu não contava.
-Esse cangacista… o padre italiano fez a cabeça dele. – Odorico coloca a gravata, veste o paletó. – Tá repetindo tudo que nem papagaio. E é um papagaísmo que pode alastrar talqualmente uma praga.
- O senhor acha?
-Foi assim que começou a Revolução Francesa. Com uns papagaístas que papagaiavam o que os outros diziam. E foram papagaiando, papagaiando… e deu no que deu.
- Acabaram cortando a cabeça de Luís XVI.
- É… - Odorico passa as mãos no pescoço, como se sentisse o fio da guilhotina – temos que dar um jeito nesse padreco.



- Licença, seu coroné? – Caboré pára na porta da sala de jantar, respeitoso, chapéu na mão, o cano do 38 aparecendo por baixo do paletó-saco. – Seu coroné mandou-me chamar?
- Mandei. – Odorico acaba de descascar um camarão, engole, chupa os dedos, limpa as mãos e a boca num guardanapo. – Reúna toda a rapaziada. Tenho pra você um serviço de profilaxia da peste subversiva.
- Tem o quê? – O jagunço arregala os olhos. – Entendo disso não, seu coroné.
- Entende sim. Entende e é doutor, de anel no dedo e canudo.


- Por esse rápido expositório dos sabidos e acontecidos, o Dr. Delegado pode ver que existem sobejíssimas provas de que esse padre é um subversionista contumaz da ordem política e social. – Odorico quebra o tom com uma inflexão maliciosa. – Noves fora os concernentes à moral pública… Contam-se dele coisas do arco-da-velha.
- É mesmo? O Delegado Pacheco tira os óculos raiban, mostrando os olhos acinzentados e cheios de pornográfico interesse.
- Um debochista praticante e juramentado. Tem que ser expulso do País.”








Podem ler aqui, no outro blog do Cupido.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Pássaros feridos


É com grande orgulho que digo que faço parte da Academia dos Livros, onde fui carinhosamente inserida pela Ameixa. Como ler é um dos meus passatempos preferidos, tinha mesmo que fazer parte desta academia maravilhosa.Venho dar-vos a conhecer o livro que acabei de ler ontem à noite e que achei maravilhoso.
Não sei se se lembram da série "Pássaros Feridos", passada entre nós no ano de 1983, protagonizada por Richard Chamberlain (no papel de Ralph de Bricassart) e Rachel Ward (no papel de Maggie Carson). Lembro-me de ser míuda e toda a gente lá em casa gostar de ver esta série.
Passados mais de 20 anos tive oportunidade de ler o livro e aconselho-o vivamente a toda a gente, pois é um tipo de leitura que nos prende até à última página.



"Existe uma lenda acerca de um pássaro que só canta uma vez na vida, com mais suavidade do que qualquer outra criatura sobre a Terra. A partir do momento em que deixa o ninho, começa a procurar um espinheiro, e só descansa quando o encontra. Depois, cantando entre os galhos selvagens, empala-se no acúleo mais agudo e mais comprido. E, morrendo, sublima a própria agonia e solta um canto mais belo que o da cotovia e o do rouxinol. Um canto superlativo, cujo preço é a existência..."

Esta é a tortuosa história de dois pássaros feridos: a vida de Ralph de Bricassart, um ambicioso sacerdote católico com o coração dividido entre o seu amor espiritual por Deus e pela carreira eclesiástica e a sua irrefreável paixão terrena pela sua jovem paroquiana Meggie Carson.
Ralph de Bricassart tenta ultrapassar a sua paixão por Meggie e chega a cardeal, nunca esquecendo no entanto o amor que sentia pela jovem e nem sequer tendo conhecimento que ambos têm um filho em comum, Dane, que também segue a vida religiosa e chega a ser ordenado padre. Meggie, Ralph, Paddy, Luke, Fee, Dane, Justine, Rainer, Patsy, Jims, Bob, Jack... e mais uma infinidade de personagens que têem como centro a fazenda de Drogheda, situada na Austrália.
Não deixem de ler este livro pois vale mesmo a pena.

Nota sobre a autora: Colleen McCullough nasceu em 1937 em Wellington, Austrália.Catedrática de Neurologia na Universidade de Yale, a sua carreira como escritora teve início quando já era uma profissional destacada da Neurologia. Pássaros Feridos (1977) granjeou-lhe um enorme êxito internacional. É autora de vários romances românticos, bem como de um ciclo de romances ambientados na Roma antiga, pelo que lhe foi concedido em 1993 um doutoramento honoris causa em História.


Podem ler aqui no blog da Risonha.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

A hora da morte


“Dia após dia, esperava que o primeiro cadáver fosse descoberto – um corpo contendo todas as pistas de que os detectives precisavam para encontrar a segunda vítima, que aguardava uma morte lenta mas certa.
As horas passavam – o salvamento era possível, mas a polícia nunca chegou a tempo. Passaram-se anos, porém, para este assassino o tempo parara. Quando uma vaga de calor se abate sobre a região, o jogo recomeça. Duas raparigas desaparecem – e as horas continuam a passar.
A agente do FBI Kimberly Quincy sabe que terá de infringir algumas regras para vencer um criminoso cruel no jogo que ele aperfeiçoou. A hora da morte chegou.”


A Hora da Morte, de Lisa Gardner, é um livro que nos deixa transporta até à mente de um criminoso ecológico. Os últimos capítulos foram lidos pela noite dentro, sem preocupação com as horas, só pensando em quem seria capaz de tal barbaridade e se a vítima conseguiria sobreviver. Os detalhes são horripilantes e dei por mim a fazer muitas caretas enquanto o lia.... “as feridas nos braços e nas pernas haviam começado a mexer-se nessa manhã. Espremera uma delas entre os dedos e observava, horrorizada, quatro larvas brancas a sair lá de dentro. Tinha a carne a apodrecer. Os insectos já se reuniam para o banquete. Pouco tempo lhe restava.”
Nas minhas aventuras literárias, já me aconteceu descobrir o assassino ainda antes de ir a meio do livro. Neste foi diferente. Foi uma grande surpresa que no final me deixou feliz por não ser uma história previsível.

Se gostam de policiais com muita acção, pouca descrição, onde cada capítulo passa a correr, aconselho a leitura deste livro.
“ O relógio a fazer tiquetaque... o planeta a morrer... os animais a chorar... os rios a gritar. Não conseguem ouvir? O calor mata...”.
Podem ler aqui no blog da Carla.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A verdade da mentira

A verdade da mentira?
Apesar de não ser meu hábito ler este género de livros, muito menos comprá-los, desta vez abri uma excepção e nestas férias comprei e li o livro do Gonçalo Amaral, "A verdade da mentira".Gostei do livro: acessível, bem escrito, interessante e nada especulativo.
Nem ia falar do assunto se não fosse o agora mostrado vídeo da busca dos cães pisteiros.
Agiram tal e qual como é contado no livro, donde presumo que todo o livro seja um trabalho honesto.
Já o que o casal McCann diz (segundo o Expresso) acerca de Gonçalo Amaral ("Gonçalo Amaral é uma vergonha") é completamente despropositado.
Falar assim de uma pessoa que fez tudo o que estava ao seu alcance para lhes encontrar a filha (que eles deixaram sozinha em casa para irem jantar!!) não me parece uma atitude correcta de pessoas de bem, que deveriam acima de tudo, querer encontrar a filha!
Podem ler aqui no blog da Saltapocinhas.

sábado, 6 de setembro de 2008

O Principezinho


Começo esta série de sugestões literárias com um livro de ouro. Ele é a base da minha vida, pois marcou-me a adolescência e moldou-me a vida. Estou a falar de um livro de Antoine de Saint-Exupéry: "O Principezinho". Foi publicado pela primeira vez e 1943 e é das obras mais admiradas do nosso tempo.


Esta obra é a mistura de um conto infantil com uma parábola para adultos que nos transporta para um ambiente de planetas, asteróides, vulcões, rosas e muitas outras personagens. Um pouco de ficção com um fundo de realidade, ou será o contrário?


O Principezinho é um menino tão ambicioso como qualquer um de nós, tem muita curiosidade e gosta de aprender, mas vive num pequeno asteróide (B612), onde tudo é familiar e previsível. Por isso decide fazer uma viagem para conhecer outras coisas e começa por visitar os planetas/asteróides vizinhos, terminando a sua viagem no 7º planeta: a Terra.No seu percurso vai encontrando personagens tão diversas como, o rei autoritário, o vaidoso, o bêbado, o homem de negócios, o acendedor de candeeiros, o geógrafo... enfim, uma série de figuras tristes que vivem com a mente bloqueada e ainda não perceberam que "o essencial é invisível aos olhos".

No planeta Terra encontra quem lhe explique o que são "criar laços", e ao longo do livro o que não falta são lições de humanidade. Os diálogos exploram conceitos tão simples como a amizade pura, a lealdade e a dedicação.


Parece que disse tudo, mas acreditem que o livro é muito mais e lê-se num instante. Aconselho a leitura em diversas fases da vossa vida, é mesmo uma obra inteligente e intemporal.


Este Principezinho cativou-me!


Podem ler aqui no blog da Moonlight.

Os passos em volta - Herberto Helder

Herberto Hélder (de seu nome completo Herberto Hélder de Oliveira) nasceu no Funchal, ilha da Madeira, no dia 23 de Novembro de 1930. Frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa, tendo trabalhado em Lisboa como jornalista, bibliotecário, tradutor e apresentador de programas de rádio. Começou desde cedo a escrever poesia, colaborando em várias publicações de que se destacam: Graal, Cadernos do Meio-Dia, Pirâmide, Poesia Experimental (1 e 2), Hidra e Nova. É um dos introdutores do movimento surrealista em Portugal nos anos cinquenta, de que mais tarde se viria a afastar.


Obras: Poesia – O Amor em Visita (1958), A Colher na Boca (1961), Poemacto (1961), Retrato em Movimento (1967), O Bebedor Nocturno (1968), Vocação Animal (1971), Cobra (1977), O Corpo o Luxo a Obra (1978), Photomaton & Vox (1979), Flash (1980), A Cabeça entre as Mãos (1982), As Magias (1987), Última Ciência (1988), Do Mundo, (1994), Poesia Toda (1º vol. de 1953 a 1966; 2º vol. de 1963 a 1971) (1973), Poesia Toda (1ª ed. em 1981). Ficção – Os Passos em Volta (1963).

retirado daqui...

Um pequeno excerto de um livro magnífico:

TEORIA DAS CORES

Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor – sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.


Compreendendo esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.

Este livro não é propriamente um best-seller; a primeira vez que o li foi para aí em 1992, na altura emprestado; só o comprei uns anos mais tarde, por aí em 1999.



Pode ler aqui no outro blog do Cupido.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O Que Diz Molero by Dinis Machado

Este livro é surpreendente. Parece que foi composto como se fosse uma peça musical, com um ritmo quase alucinante que não nos deixa parar de ler. O texto abaixo, da Autoria de Viriato Teles foi retirado daqui.


Mesmo que não tivesse escrito mais nada, um romance chegava para lhe garantir um lugar de destaque na Literatura do século XX. "O Que Diz Molero" é o título do livro, Dinis Machado o seu autor.


Publicado pela primeira vez vai para trinta anos, a história narrada por Austin e Mister Deluxe tornou-se num êxito sem precedentes e modificou a vida do homem que a criou: de um dia para o outro, viu-se projectado para a primeira linha do reconhecimento do público, da crítica e, mais difícil ainda, dos seus pares. Tudo com uma história simples feita de muitas histórias.


Com duas dezenas de edições em Portugal, o livro alcançou ainda um sucesso retumbante em França e no Brasil, onde foi também adaptado para teatro (em cena durante mais de quatro anos), e vai ter em breve uma versão cinematográfica. Pequenas coisas que são suficientes para encher de satisfação Dinis Machado, que responde também pelo nome de Dennis McShade, autor de três policiais que fizeram história e de um quarto que será publicado no ano que vem, assinalando os 40 anos da criação de Peter Maynard, um assassino com preocupações filosóficas.


Além disso, Dinis Machado tem, como diz, uma vida caótica. Feliz, apesar de tudo, ou por causa de tudo. Casou tarde e ficou viúvo cedo. Tem uma filha, Rita, por quem se meteu na pele de um escritor americano. E tem a Dulce, companheira e anjo-da-guarda, reduto quase final. E a vida toda, os caminhos por onde andou. Este Verão, o pai de Molero e Maynard deixou-se registar para o Arquivo da Memória dos Autores Portugueses que a SPA está a organizar. Uma longa conversa onde o escritor desfia as recordações de 75 anos de encantos, desencantos e descobertas, de que aqui se deixam alguns fragmentos, na primeira pessoa do singular.


Infância


A minha infância foi magnífica. Foi na rua. Saía de casa, a minha mãe depois batia-me porque chegava tarde, o meu pai às vezes ficava zangado. Eu andava na rua, com os outros miúdos. Ficou aquela nostalgia do tempo que já não volta. Nesse tempo não havia estas periferias, havia os sítios, e era aí que vivíamos. Os meus pais eram pessoas simples. A minha mãe cantava o fado muito bem, o meu pai era autor de fados. Foi ele que escreveu aquele fado muito famoso, "Bairro Alto aos seus amores tão dedicado", que depois foi publicado se calhar em nome de outro, estas coisas sempre se fizeram.


Bairro Alto


Vivi no Bairro Alto, na Rua do Norte, até aos 34 anos, quando me casei. Era um lugar extraordinário, que tinha um bocado de tudo: a ópera, o teatro, o cinema, os livros, as discussões nos cafés, a política, a música. Era uma coisa muito fervilhante. E eu cresci nesse ambiente, com uma costela política que nessa altura se chamava de esquerda, hoje já não sei como é que se chama. Chamava-se de esquerda porque tinha o desejo de combater as injustiças do mundo.


Cinema e poesia


Parte da minha vida passei-a no Cinema Loreto, a ver filmes de aventuras. Às vezes íamos para lá quando o cinema abria e ficávamos aí até à meia-noite. Tenho uma tentação cinematográfica grande. Vem-me desse tempo, também, a leitura dos poetas. Eu adoro poesia, encheu-me muito a vida. Desde os Cantares de Amigo até à mais recente, li quase tudo o que apanhei. Foi no cinema que aprendi a falar inglês. O meu inglês é americano, dos filmes. A minha formação não foi académica, pelo contrário: às vezes chumbava por faltas porque ia ao cinema ou ficava a ler poesia em vez de ir às aulas. E não passei nunca do que se chama agora 12º ano porque não queria, não me interessava. Sempre tive a tentação de subverter o que me rodeava.


Record


Comecei a escrever no Record. O meu pai levou-me lá um texto, e o Fernando Ferreira, que era uma excelente pessoa, disse-me "Oh, Dinis, você é um excelente escritor, mas isto é um jornal para analfabetos. Eu vou publicá-lo porque gosto do texto, mas não me mande mais nenhum assim". Não sei o que é feito desse primeiro texto, desapareceu. Eu não guardo nada, se tenho alguma coisa guardada é a minha mulher que o faz. A minha vida é caótica à partida, e eu não quero organizá-la, deixo-a correr caótica. Mas lá fui para o Record, fartei-me de fazer jogos de futebol. Depois fui para o Diário Ilustrado e para o Diário de Lisboa, sempre a escrever sobre desporto. Mas, ao mesmo tempo, escrevia poesia, fazia textos para revistas da época, nunca me sujeitei a estar só na área do desporto.


Diário Ilustrado


Um dia, o Roussado Pinto, que era o director do Diário Ilustrado, chamou-me e disse-me que o jornal ia fechar. Tinham-lhe dado o prazo de um mês e uma determinada verba para ele fazer o jornal durante esse tempo. E ele propôs-me fazermos aquilo os dois: ele fazia um caderno, eu fazia o outro, e dividíamos o dinheiro pelos dois. Inventávamos histórias, inventámos coisas que não sabíamos se as pessoas iam perceber ou não. E no dia em que o jornal fechou, despedimo-nos à porta, e ele disse-me: "Agora espera pela minha chamada". E quando me chamou foi para fazer a Rififi.


Rififi


Fui chamado para a Íbis pelo Roussado Pinto para dirigir a colecção Rififi, que era uma espécie de contraponto à Vampiro, mas muito mais desalinhada. Às vezes aparecia-me o restolho dos americanos, acho que cheguei a publicar o Dashiell Hammett e também o Raymond Chandler. E depois apareceram autores que eram considerados menores, como o Ross MacDonald ou o Frank Gruber, e que eu utilizava também como suportes do trabalho que eu queria fazer. Lia-os com o meu americano, sabia como é que diziam as coisas, aquela forma seca. A Censura fechava um bocado os olhos, achavam que aquilo não era importante. Não levavam a sério. Mas deviam.


Dennis McShade


Um dia, a minha filha estava para nascer, e eu precisava de vinte contos, fui falar com o Roussado Pinto. E ele disse: "Está bem, ganhas vinte contos, mas fazes três romances policiais com um nome americano, como eu faço". E fiz três romances policiais num ano. E pensei: "Bom, já agora aproveito o gozo da subversão do romance negro". Acho que fui um bocado subversor nos romances policiais: é a mistura do investigador com o assassino, um intelectual. Tem um lado de paródia: colocar um intelectual em zonas esconsas da vida, a fazer aquele tipo de trabalho. Foram três livros que fizeram escola: as pessoas que perceberam o que eu queria fazer, perceberam que ali estava o veículo para uma nova literatura. E a Censura também deve ter percebido, porque ao terceiro livro apareceu-me lá um tipo a perguntar quem era aquele McShade.


Tintim


Quando a Íbis faliu, a Bertrand ficou com o projecto de edição da revista Tintim para Portugal, e eu fiquei lá. Durante 15 anos fiz o Tintim todas as semanas, e deu-me muito gozo, também. Aquilo não era bem o nosso delírio, era já dentro dos cânones da aceitação, mas com muita qualidade literária e gráfica. Era um trabalho esmerado. E publicávamos coisas de autores portugueses, também. Mas fazia aindamuito trabalho fora do Tintim, editei muita coisa de autores que achava curiosos e que achava que tinham venda possível.


Molero


Quando apareci na Bertrand com "O Que Diz Molero", diz-me assim a Piedade: "Eu vou publicar este livro nem que seja despedida". Porque o livro tinha aquela linguagem um bocado desbragada... O Molero era uma ideia que me vinha de trás. Estava eu a escrever os policiais e já queria fazer o Molero. Eu queria fazer um livro subversor, um livro com uma linguagem própria desse livro. E foi assim que me saiu. E foi feliz, foi muito feliz. É um livro que tem a ver com a infância, com tudo. Foi um sucesso. Agora está para sair a vigésima edição, há um grupo de "molerianos" que estão sempre a activar o livro.


Consagração


O êxito do livro surpreendeu-me. Eu achava que estava a inovar, mas não tenho a certeza, nunca se sabe. O texto foi apadrinhado pela chamada vanguarda da literatura, os elogios foram enormes. Invejas? Mais tarde é que comecei a sentir. Mas eu não tenho razão de queixa. Os outros livros foram como que prolongamentos de "O Que Diz Molero". Mas eu sabia que não se pode repetir a mesma coisa, criar um êxito generoso duas ou três vezes seguidas. Sempre fugi à lógica da repetição da receita.


Vida


Recentemente, o Molero foi publicado em França, e as revistas de cultura de Paris, desde o Magazine Littéraire, ao Figaro, vieram dizer que é "um dos grandes livros do século". E eu fiquei satisfeito com isso, naturalmente. E tenho que reconhecer que eles foram muito generosos comigo. "O Que Diz Molero" tem uma história, inacabada ainda, que me dá para preencher a vida. E portanto é uma história que espero que não acabe nunca, que as gerações novas possam lidar com isso. O mundo de hoje é feito de coisas tão fragmentadas, com tão pouco sentido, que as coisas acabadas perdem validade com o tempo. Mas eu acho que há coisas que vão ficando, o que me satisfaz bastante. Porque há sempre leitores exigentes, e eu gosto de leitores exigentes. Eles é que fizeram o livro. Eu só o escrevi.


Viriato Teles

Podem ver aqui no outro blog do Cupido.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A montanha da alma

Hoje em dia quando falamos da China temos duas abordagens possíveis e imediatas. Uma, é o nosso pensamento viajar no tempo e virem-nos à memória imagens de uma cultura milenar onde imperadores, porcelana de mil e uma cores, pagodes, paisagens que rompem os vapores das nuvens, sedas e concubinas são só pormenores de uma longa lista.

A outra abordagem é a de nos saltarem à ideia as incontáveis lojas de vende tudo, que povoam o nosso país, e o sentido pejorativo de “compraste no chinês?”.Parece que falamos de dois países diferentes e debatemo-nos entre sentimentos opostos.

Num tempo em que os jogos olímpicos estão, ainda, tão na ordem do dia e que nos mostraram uma China poderosa, que se esmerou por mostrar ao mundo as suas grandes capacidades, não só na organização do evento como também nos atletas medalhados ( um em cada modalidade, pelo menos) acho que vem a propósito falar de Gao Xingjian.

Gao Xingjian nasceu na China em 1940, vive em França desde 1988, é romancista, pintor, dramaturgo, encenador, crítico literário, poeta e o Prémio Nobel da Literatura pelo conjunto da sua obra em 2000.

Eu li, há já algum tempo, a Montanha da Alma que é um livro seu, de 546 páginas, e onde todas as características do autor, acima mencionadas, se revelam magistralmente.



Adorei lê-lo, saborei frases e passagens, tocou-me a alma, por isso vos falo dele!

O eu narrador que nos conta a sua viagem através do país profundo, à procura da Montanha da Alma, local mítico e incerto no mapa da China, vai-nos mostrando, com nostalgia, um país desconhecido, ancestral, intocado e puro ( também duro e pobre) que contrasta com um país burocrata, espartilhado, injusto e cego pela revolução maoísta, que, por sua vez, choca com as metrópoles modernas, industriais e capitalistas, onde pululam jovens ocidentalizados e incaracterísticos.

Somos confrontados com três épocas marcadas por ideologias diferentes cujas alterações profundas na sociedade traçam destinos, muitas vezes preversos, em algumas das pessoas que se cruzam com o autor e noutras deixam-nas cristalizadas como se não tivesse havido revolução ( evolução? ). Surge-nos um país pintado como um quadro, de fortes contrastes.

Não é um livro fácil com uma qualquer história que é contada. Não há uma história, há histórias que se vão contando, de ele ou ela que se cruzam com o narrador. As mulheres mais castigadas, sofridas, numa sociedade preconceituosa.

É díficil explicar as emoções que esta narrativa desperta, a poesia que destila na descrição de paisagens ou dos sentimentos, a delicadeza e o pudor das relações humanas ou religiosas (budista e taoísta essencialmente) .

« E é assim que uma paisagem vulgar a que não se presta a mínima atenção deixa no intímo uma impressão profunda. Em mim, faz nascer subitamente uma espécie de desejo, uma vontade de entrar nela, de entrar nessa paisagem de neve, não ser mais que uma silhueta, uma silhueta que obviamente não teria quarquer sentido se não estivesse a comtemplá-la da janela. O céu sombrio, o chão coberto de neve ainda mais brilhante em contraste com este céu sombrio, já não há melros, já não há pardais, a neve absorveu qualquer ideia e qualquer sentido. »

« Este "eu" no meio do tu não é senão um reflexo no espelho, a imagem invertida das flores na água; se não entrares no espelho, não conseguirás apanhar o que quer que seja e só terás piedade de ti próprio em pura perda. »

E depois como num texto dramático, em que alternam as personagens “ela diz, tu dizes” mas sempre com a poesia nas palavras:

« Tu dizes que acabas de sonhar, adormecido sobre ela. Ela diz que é verdade, há um momento ela falava contigo, tu não dormias, ela diz que te acariciava e enquanto tu sonhavas, ela tocou o teu pulso, apenas há um minuto. Dizes que é verdade, tudo era ainda distinto, sentias a doçura dos seus seios, a respiração do seu ventre. Ela diz que te abraçava, que te tocou o teu pulso. Dizes que viste erguer-se a superfície negra do mar,a superfície perfeitamente plana, levantou-se lenta e inexoravelmente.Comprimida, a linha entre o céu e o mar desapareceu e a superfície negra ocupou todo o espaço. Ela diz que dormiste colado ao seu peito. Dizes que sentiste os seus seios a crescer como uma maré negra, que o fluxo era como um desejo que aumenta, cada vez mais forte; quando ela ia engolir-te, dizes que sentiste uma espécie de inquietação. Ela diz: estavas sobre o meu peito como uma criança tranquila(...)»

A Viagem à procura da Montanha da Alma é como a demanda do Santo Graal. Uma viagem interior à procura da beleza, da pureza, do conhecimento, de si mesmo... E percebemos claramente isso quando, ao longo da leitura, sentimos que estamos nós próprios à procura de qualquer coisa, ... de nós mesmos.

Essa escalada à montanha, aos cinco mil metros, de altura ou profundidade na própria mente, é acompanhada da incapacidade das palavras, da mistura onírica da realidade, ou como diz Noel Dutrait no prólogo, “evocação da realidade absurda ou kafkiana contemporânea”.

E o livro termina:

« Fingir compreender, mas de facto, não compreender nada.

Na realidade, não compreendo nada, estritamente nada.É assim.»

Há livros que não se explicam, leêm-se!


Pode ler aqui no blog da Noémia.