quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O Que Diz Molero by Dinis Machado

Este livro é surpreendente. Parece que foi composto como se fosse uma peça musical, com um ritmo quase alucinante que não nos deixa parar de ler. O texto abaixo, da Autoria de Viriato Teles foi retirado daqui.


Mesmo que não tivesse escrito mais nada, um romance chegava para lhe garantir um lugar de destaque na Literatura do século XX. "O Que Diz Molero" é o título do livro, Dinis Machado o seu autor.


Publicado pela primeira vez vai para trinta anos, a história narrada por Austin e Mister Deluxe tornou-se num êxito sem precedentes e modificou a vida do homem que a criou: de um dia para o outro, viu-se projectado para a primeira linha do reconhecimento do público, da crítica e, mais difícil ainda, dos seus pares. Tudo com uma história simples feita de muitas histórias.


Com duas dezenas de edições em Portugal, o livro alcançou ainda um sucesso retumbante em França e no Brasil, onde foi também adaptado para teatro (em cena durante mais de quatro anos), e vai ter em breve uma versão cinematográfica. Pequenas coisas que são suficientes para encher de satisfação Dinis Machado, que responde também pelo nome de Dennis McShade, autor de três policiais que fizeram história e de um quarto que será publicado no ano que vem, assinalando os 40 anos da criação de Peter Maynard, um assassino com preocupações filosóficas.


Além disso, Dinis Machado tem, como diz, uma vida caótica. Feliz, apesar de tudo, ou por causa de tudo. Casou tarde e ficou viúvo cedo. Tem uma filha, Rita, por quem se meteu na pele de um escritor americano. E tem a Dulce, companheira e anjo-da-guarda, reduto quase final. E a vida toda, os caminhos por onde andou. Este Verão, o pai de Molero e Maynard deixou-se registar para o Arquivo da Memória dos Autores Portugueses que a SPA está a organizar. Uma longa conversa onde o escritor desfia as recordações de 75 anos de encantos, desencantos e descobertas, de que aqui se deixam alguns fragmentos, na primeira pessoa do singular.


Infância


A minha infância foi magnífica. Foi na rua. Saía de casa, a minha mãe depois batia-me porque chegava tarde, o meu pai às vezes ficava zangado. Eu andava na rua, com os outros miúdos. Ficou aquela nostalgia do tempo que já não volta. Nesse tempo não havia estas periferias, havia os sítios, e era aí que vivíamos. Os meus pais eram pessoas simples. A minha mãe cantava o fado muito bem, o meu pai era autor de fados. Foi ele que escreveu aquele fado muito famoso, "Bairro Alto aos seus amores tão dedicado", que depois foi publicado se calhar em nome de outro, estas coisas sempre se fizeram.


Bairro Alto


Vivi no Bairro Alto, na Rua do Norte, até aos 34 anos, quando me casei. Era um lugar extraordinário, que tinha um bocado de tudo: a ópera, o teatro, o cinema, os livros, as discussões nos cafés, a política, a música. Era uma coisa muito fervilhante. E eu cresci nesse ambiente, com uma costela política que nessa altura se chamava de esquerda, hoje já não sei como é que se chama. Chamava-se de esquerda porque tinha o desejo de combater as injustiças do mundo.


Cinema e poesia


Parte da minha vida passei-a no Cinema Loreto, a ver filmes de aventuras. Às vezes íamos para lá quando o cinema abria e ficávamos aí até à meia-noite. Tenho uma tentação cinematográfica grande. Vem-me desse tempo, também, a leitura dos poetas. Eu adoro poesia, encheu-me muito a vida. Desde os Cantares de Amigo até à mais recente, li quase tudo o que apanhei. Foi no cinema que aprendi a falar inglês. O meu inglês é americano, dos filmes. A minha formação não foi académica, pelo contrário: às vezes chumbava por faltas porque ia ao cinema ou ficava a ler poesia em vez de ir às aulas. E não passei nunca do que se chama agora 12º ano porque não queria, não me interessava. Sempre tive a tentação de subverter o que me rodeava.


Record


Comecei a escrever no Record. O meu pai levou-me lá um texto, e o Fernando Ferreira, que era uma excelente pessoa, disse-me "Oh, Dinis, você é um excelente escritor, mas isto é um jornal para analfabetos. Eu vou publicá-lo porque gosto do texto, mas não me mande mais nenhum assim". Não sei o que é feito desse primeiro texto, desapareceu. Eu não guardo nada, se tenho alguma coisa guardada é a minha mulher que o faz. A minha vida é caótica à partida, e eu não quero organizá-la, deixo-a correr caótica. Mas lá fui para o Record, fartei-me de fazer jogos de futebol. Depois fui para o Diário Ilustrado e para o Diário de Lisboa, sempre a escrever sobre desporto. Mas, ao mesmo tempo, escrevia poesia, fazia textos para revistas da época, nunca me sujeitei a estar só na área do desporto.


Diário Ilustrado


Um dia, o Roussado Pinto, que era o director do Diário Ilustrado, chamou-me e disse-me que o jornal ia fechar. Tinham-lhe dado o prazo de um mês e uma determinada verba para ele fazer o jornal durante esse tempo. E ele propôs-me fazermos aquilo os dois: ele fazia um caderno, eu fazia o outro, e dividíamos o dinheiro pelos dois. Inventávamos histórias, inventámos coisas que não sabíamos se as pessoas iam perceber ou não. E no dia em que o jornal fechou, despedimo-nos à porta, e ele disse-me: "Agora espera pela minha chamada". E quando me chamou foi para fazer a Rififi.


Rififi


Fui chamado para a Íbis pelo Roussado Pinto para dirigir a colecção Rififi, que era uma espécie de contraponto à Vampiro, mas muito mais desalinhada. Às vezes aparecia-me o restolho dos americanos, acho que cheguei a publicar o Dashiell Hammett e também o Raymond Chandler. E depois apareceram autores que eram considerados menores, como o Ross MacDonald ou o Frank Gruber, e que eu utilizava também como suportes do trabalho que eu queria fazer. Lia-os com o meu americano, sabia como é que diziam as coisas, aquela forma seca. A Censura fechava um bocado os olhos, achavam que aquilo não era importante. Não levavam a sério. Mas deviam.


Dennis McShade


Um dia, a minha filha estava para nascer, e eu precisava de vinte contos, fui falar com o Roussado Pinto. E ele disse: "Está bem, ganhas vinte contos, mas fazes três romances policiais com um nome americano, como eu faço". E fiz três romances policiais num ano. E pensei: "Bom, já agora aproveito o gozo da subversão do romance negro". Acho que fui um bocado subversor nos romances policiais: é a mistura do investigador com o assassino, um intelectual. Tem um lado de paródia: colocar um intelectual em zonas esconsas da vida, a fazer aquele tipo de trabalho. Foram três livros que fizeram escola: as pessoas que perceberam o que eu queria fazer, perceberam que ali estava o veículo para uma nova literatura. E a Censura também deve ter percebido, porque ao terceiro livro apareceu-me lá um tipo a perguntar quem era aquele McShade.


Tintim


Quando a Íbis faliu, a Bertrand ficou com o projecto de edição da revista Tintim para Portugal, e eu fiquei lá. Durante 15 anos fiz o Tintim todas as semanas, e deu-me muito gozo, também. Aquilo não era bem o nosso delírio, era já dentro dos cânones da aceitação, mas com muita qualidade literária e gráfica. Era um trabalho esmerado. E publicávamos coisas de autores portugueses, também. Mas fazia aindamuito trabalho fora do Tintim, editei muita coisa de autores que achava curiosos e que achava que tinham venda possível.


Molero


Quando apareci na Bertrand com "O Que Diz Molero", diz-me assim a Piedade: "Eu vou publicar este livro nem que seja despedida". Porque o livro tinha aquela linguagem um bocado desbragada... O Molero era uma ideia que me vinha de trás. Estava eu a escrever os policiais e já queria fazer o Molero. Eu queria fazer um livro subversor, um livro com uma linguagem própria desse livro. E foi assim que me saiu. E foi feliz, foi muito feliz. É um livro que tem a ver com a infância, com tudo. Foi um sucesso. Agora está para sair a vigésima edição, há um grupo de "molerianos" que estão sempre a activar o livro.


Consagração


O êxito do livro surpreendeu-me. Eu achava que estava a inovar, mas não tenho a certeza, nunca se sabe. O texto foi apadrinhado pela chamada vanguarda da literatura, os elogios foram enormes. Invejas? Mais tarde é que comecei a sentir. Mas eu não tenho razão de queixa. Os outros livros foram como que prolongamentos de "O Que Diz Molero". Mas eu sabia que não se pode repetir a mesma coisa, criar um êxito generoso duas ou três vezes seguidas. Sempre fugi à lógica da repetição da receita.


Vida


Recentemente, o Molero foi publicado em França, e as revistas de cultura de Paris, desde o Magazine Littéraire, ao Figaro, vieram dizer que é "um dos grandes livros do século". E eu fiquei satisfeito com isso, naturalmente. E tenho que reconhecer que eles foram muito generosos comigo. "O Que Diz Molero" tem uma história, inacabada ainda, que me dá para preencher a vida. E portanto é uma história que espero que não acabe nunca, que as gerações novas possam lidar com isso. O mundo de hoje é feito de coisas tão fragmentadas, com tão pouco sentido, que as coisas acabadas perdem validade com o tempo. Mas eu acho que há coisas que vão ficando, o que me satisfaz bastante. Porque há sempre leitores exigentes, e eu gosto de leitores exigentes. Eles é que fizeram o livro. Eu só o escrevi.


Viriato Teles

Podem ver aqui no outro blog do Cupido.

11 comentários:

ameixa seca disse...

Confesso que nunca li mas que já ouvi falar muito. Tanto no livro como no teatro. Gostei desta pequena entrevista biográfica dada pelo próprio autor. Vê-se onde reside a genialidade dele ;)

Noémia disse...

Há imenso tempo que li este livro,reli-o mais tarde, faz parte dos clássicos da minha estante. Adorei o livro, ri-me até mais não com as histórias, achei a linguagem e o estilo fantásticos numa época em que não se escrevia assim. Só acho comparável com a
« Crónica dos Bons Malandros », publicada três anos mais tarde.

cupido disse...

ameixa, este livro é imperdível; por acaso nunca vi nenhuma encenação, mas bem feita é capaz de ser um must.
noémia, apesar da aparente ligeireza da linguagem do dinis machado e da capacidade do mário zambujal de prender o leitor, estas duas obras andam em mundos diferentes (creio). há uns tempos ouvi um programa na antena 2 sobre o dinis machado e uma das questões referidas acerca da escrita dele era a referência constante a factos ou personagens da cultura, deixando de algum modo fazer uma leitura mais lata do que a narrativa induzia directamente. Também, em termos formais (e eu disse que parecia que tinha sido composta como uma peça musical - efectivamente a referencia ao pai do rapaz e a alguns personagens, funcionam como "temas" de um andamento de uma sonata) a construção é de um absoluto rigor. Obviamente que não menosprezo o livro do zambujal (que li sei lá quantas vezes), mas que, no caso da "crónica dos bons malandros" é uma (interessante) história bem contada, mas não muito mais.

Noémia disse...

Cupido, vê bem, eu não falei em ligeireza de linguagem, falas nisso tu. Eu apenas transmiti uma opinião ligeira sobre a impressão que o livro me deixou na época em que o li. Não ouvi nenhum dos nossos "ilustres" falar sobre o Dinis Machado, nem o programa da Antena 2, até porque costumo ouvir a RFM. Ouvi sim a opinião de imensas pessoas que leram o livro e que, como eu, deliraram e riram com as histórias, a linguagem e o ritmo alucinante da acção.Se em termos formais a história se compara a um andamento de uma sonata? És capaz de ter razão...Só que eu não percebo nada de música clássica para além do prazer que me dá ouvi-la!Agora permite-me discordar de ti quando dizes que o livro de Zambujal é apenas uma história bem contada, porque também o não é apenas «À noite logo se vê» ou «Histórias do fim da rua»!Eu quando disse que eram comparáveis, não me refiro nem à obra, nem à história nem aos autores, apenas me refiro à ruptura e subversão de escrita em relação ao padrão, à norma vigente naquela época.

cupido disse...

noémia, em relação à "ligeireza" da linguagem eu referi que era aparente. relativamente ás pessoas que "deliraram e riram com as histórias, a linguagem e o ritmo alucinante", subscrevo; aliás, a passagem do livro para cinema, apesar de ter sido feita pelo Fernando Lopes, não faz jus ao livro (o que atesta da sua qualidade). Quando digo que é uma interessante (não usei o apenas) história bem contada, não quero menosprezar o livro, como é obvio. Por fim, a ruptura e subsersão da escrita... não a considero existir em nenhum dos casos. Alberto Pimenta, António Victorino de Almeida (coca cola killer...), Luíz Pacheco e outros tinham uma escrita bem mais "subversiva", como o tiveram no passado Bocage, Natália Correia, mesmo Soeiro Pereira gomes ou Alves Redol. Como já tinha dito, não menosprezo o(s) livro(s) do Mário Zambujal.

Noémia disse...

Bom, Cupido, parece que nos falta a mesa redonda e uma qualquer bebida quente, porque a cavaqueira em torno dos livros já cá está!
Já percebi que não querias dizer mal do Zambujal e que não usaste o "apenas".:) Usaste "e não muito mais" e eu interpretei que o fizeste com o mesmo valor restritivo.
Concordo que o filme não faz jus ao livro, mas,isso acontece com todos os filmes baseados em livros. O imaginário pessoal e afectivo que investimos na leitura, deste ou daquele livro, faz com que sintamos um certo desencanto ao ver o filme sobre ele. (É o que eu sinto!)
Quanto à subversão da escrita,a meia dúzia de nomes de escritores que citas, não estavam em jogo quando me pronunciei,por isso não podia compará-los uns com os outros. Eu disse que Machado e Zambujal romperam com a norma não disse que não havia outras excepções!
Mas não percebo muito bem porque é que a propósito da escrita subversiva misturas os escritores.Uns foram subversivos em relação à escrita mas os outros não têm nada a ver, romperam apenas com a estética literária vigente e apresentam apenas características de um novo movimento literário. Foram subversivos mas apenas em relação ao contexto político e social!
A linguagem de Bocage é, até, bem convencional tirando "meia dúzia" de poemas em que a linguagem é satírica e burlesca! Não achas?

cupido disse...

eh eh, realmente uma mesa e uma bebida iam bem, porque este vai ser longo...
Em primeiro lugar, "apenas" é um bocado diferente do "não muito mais" porque enquanto o primeiro reduz objectiva e absolutamente o valor do sujeito, o segundo faz essa redução de uma forma relativa, logo menos gravosa.
Quanto ao facto de um filme não espelhar a qualidade de um bom livro, concordo em geral, mas basta lembrar-me do "Laranja Mecânica" (Burgess/Kubrick), "Morte em Veneza" (Mann/Visconti), "Lolita" (Nabucov/Kubrick ou Lyne), "E tudo o Vento Levou" (Mitchell/Fleming) e fico a pensar que ainda bem que esses livros foram escritos para eu me poder deliciar com estes magníficos filmes.
Quanto à subversão, efectivamente podemos falar em assuntos ou modos de escrita e então formalmente o Saramago é subversivo (e ainda bem) sem subverter canones culturais/sociais. Quanto ao Bocage, considero-o subversivo como Eça o foi (ambos abordaram magistralmente assuntos algo incómodos na altura).

Noémia disse...

Saramago é subversivo em tudo até no campo cultural e social. Não leste " Levantado do chão"?
Eça, que eu adoro, rompeu com uma estética (Romantismo) e escreveu segundo os cânones de outra nova (Realismo). Foi inovador,crítico, contundente.
Não percebo a que te referes nem porque os achas subversivos,quando falas de "assuntos incómodos" abordados magistralmente por Bocage e por Eça!:)

cupido disse...

No caso do Eça, os amores da Luísa e do Basílio, do Carlos e da Eduarda, do Padre Amaro e da Amélia tão bem descritos não eram incómodos para a burguesia do século XIX? Relativamente ao Bocage, a generalidade da sua obra era provocante, quer pelos temas, quer pela linguagem.

Noémia disse...

Se falas dos amores em Eça,concordo que podiam ser incómodos para a burguesia, era esse o objectivo dele, de Antero de Quental, de toda a Geração de 70,à semelhança do que se passava em França com Zola e Flaubert,mas não são marcas da subversão que falávamos.
Com essas descrições, Eça pretende demonstrar que a hereditariedade e a educação são determinantes para o indivíduo,demonstrar as armadilhas do Romantismo, colocar o Realismo no seu extremo, o Naturalismo, tal como sucedia no estrangeiro!
A generalidade da obra de Bocage foi escrita segundo os cânones neoclássicos da Arcádia Lusitana.Insatisfeito rompe com essas normas e passa a apresentar características Pré-românticas cujos temas são a noite,a morte,o ciúme, bem exacerbados mas nunca subversivos.O estereótipo de um Bocage anedótico, satírico e erótico é demasiado redutor para a grandeza da sua escrita.
E já agora...só nós os dois é que trocamos opiniões? Onde anda o resto da "malta"?

cupido disse...

Pois é, parece que anda toda a gente a dormir... ou a ler, para haver novas entradas na academia.