Há uns dias atrás a ameixa seca convidou-me para fazer parte duma tertúlia literária e comentar um livro de que eu tivesse gostado. Aceitei o convite, lisonjeada, mas surgiu-me uma crise existencial...que livro comentar quando gosto de tantos?
Ler é, e sempre foi, uma paixão! Tinha três anos apenas e já vislumbrava que a leitura seria um passaporte para viagens e amigos incontáveis e, quando ia às compras com a minha avó, entrava na drogaria, ela sentava-me no balcão e eu punha-me a ler os rótulos da embalagens; O-mo, Ti-de...espertalhona soletrava e tudo! As pessoas à minha volta maravilhavam-se com o prodígio. Tão pequenina e já sabia ler! Pois, eu tinha e tenho é uma memória fotográfica!
Aos doze anos tinha já devorado tudo o que era próprio para a minha idade, Enid Blyton, Odete de Saint Maurice, Júlio Dinis etc. Então o meu pai deu-me autorização para ler as prateleiras de baixo de determinada estante. Eram esses os livros que eu lia de dia e dos quais já nem me lembro dos títulos...Porque à noite...Li às escondidas Stefan Zweig, Dostoievski, Baudelaire. Claro que não percebia aqueles "frissons" apaixonados mas, mais tarde, reli esses autores e entendi.
Percebem agora a minha dúvida? Que livro partilhar? Há livros que nos marcam terrivelmente consoante a idade em que os lemos ou a fase de vida por que passamos.
Assim, porque estou de férias e não tenho grande parte dos livros que amo perto de mim, resolvi comentar « A sombra do vento » de Carlos Ruiz Zafón, vencedor de alguns prémios, nascido em Barcelona e morador em Los Angeles onde colabora com alguns jornais.
A acção deste livro desenrola-se em Barcelona e atravessa diversas épocas, o pós guerra, a Guerra Civil espanhola e o Franquismo, dando-nos uma visão histórica e de costumes. Mas isso é só a paisagem...
O livro começa numa madrugada, com um pai que leva pela mão o seu filho, no maior dos segredos, ao cemitério dos livros esquecidos para que ele escolha um que terá que manter sempre vivo.
« - Este lugar é um mistério, Daniel, um santuário. Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte....»
Este adolescente escolherá, ao acaso, um livro maldito e deixar-se-á cativar de tal maneira pelo enredo que não descansará enquanto não resgatar o seu autor do anonimato. Este facto modificará para sempre a sua vida e arrasta-o para um labirinto de intrigas e segredos em que o passado se cruza com o presente, através de uma Barcelona obscura.
O amor está presente ao longo de toda a narrativa, numas personagens, alucinado e não correspondido; noutras, épico, ingénuo e puro; noutras ainda, doentio e vagabundo.
«Ao atravessar a sala na base da escadaria, Julian ergueu a vista e vislumbrou de raspão uma silhueta a subir com a mão no corrimão. Sentiu que se perdia numa visão.(...) Tinha sonhado com ela em inúmeras ocasiões, com aquela mesma escada, aquele vestido azul e aquela expressão no olhar de cinza, sem saber quem era nem por que lhe sorria.(...) Havia tempo que a aia tinha aprendido a reconhecer nos seus olhares o desafio e a arrogància do desejo: uma vontade cega de serem descobertos, de que o seu segredo fosse um escândalo apregoado e deixassem de se esconder nos cantos e desvãos para se amarem às apalpadelas. (...) Foi então que Julian conduziu Penélope até ao quarto de Jacinta no terceiro andar da casa. Despiram-se à pressa, com raiva e anseio, arranhando a pele e desfazendo-se em silêncios. Aprenderam os corpos um do outro de cor e enterraram aqueles seis dias de separação em suor e saliva...»
Surgem-nos personagens fantásticas, de uma densidade psicológica fascinante, que nos mantêm presos num suspense quase de narrativa policial, que nos levam a ler quase de um fôlego, página atrás de página.
Clara Barceló, cega e ninfomaníaca; Neri o professor de música e gigôlo; Fermin Romero de Torres, vagabundo resgatado à rua e que se revela um filósofo e braço direito de Daniel; Fumero, chefe da polícia que persegue tudo e todos como uma sombra derramando a sua raiva e esperando a sua presa com paciência de aranha; Nuria, tradutora e apaixonada infeliz de Julian; Miguel, o mais fiel dos amigos; Penélope e Bea as mulheres amadas por Julian e Daniel respectivamente; etc...
E, curiosamente, quanto mais Daniel investiga Julian Carax, o autor desconhecido do seu livro, mais a história que descobre se parece com a vida que ele próprio vai vivendo, num paralelismo que nos parece tão evidente que lhe adivinhamos o final trágico,... de um e de outro.
Mas seria demasiado óbvio para um romance tão bem construído!
É exactamente esta obstinada procura, esta fidelidade incorruptível deste jovem Daniel que levará a um desfecho inesperado que eu não vos vou contar, claro!
O autor deste livro tem um estilo único, uma linguagem forte, descrições pormenorizadas e poéticas. Irónico e até cínico na análise da vida. Hilariante e desconcertante quando menos esperamos.
Bea diz já no final da história « que a arte de ler está a morrer muito lentamente, que é um ritual íntimo, que um livro é um espelho e que só podemos encontrar nele aquilo que já temos dentro, que ao ler aplicamos a mente e a alma, e que estes são bens cada dia mais escassos.» Eu digo isto quase todos os dias na ânsia de motivar para a leitura.
Muito mais haveria a dizer mas acho que o post já vai longo demais. Espero ter conseguido aguçar-vos a curiosidade, suficientemente, para que tenham a tentação de ler o livro e, acreditem, é muito melhor do que eu o descrevi.
Pode ler aqui no blog da Noémia.
1 comentário:
Estou actualmente a ler este livro, se tivesse mais tempo acho que o leria todo de seguida! É muito cativante, de facto. Parabéns pelo blog!
Cristina
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